quarta-feira, 28 de fevereiro de 2018

Da dignidade de São José, Esposo da Virgem Maria

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Iacob autem genuit Ioseph, virum Mariae, de qua natus est Iesus – “Jacob gerou a José, esposo de Maria, da qual nasceu Jesus” (Mt 1, 16)

Sumário. Para formarmos uma ideia da dignidade de São José, basta ponderarmos que, na qualidade de esposo de Maria e chefe da sagrada Família, tinha verdadeiros direitos sobre a Mãe de Deus e seu divino Filho, que assumiram a obrigação de lhe obedecer, e lhe obedeceram em tudo. Quanto devemos, pois, honrar àquele a quem Deus honrou tanto! Quanto devemos confiar na eficácia de sua proteção! ― E tu, és-lhe realmente devoto?… Recorres prontamente a ele em tuas necessidades?

I. Considera em primeiro lugar a dignidade de São José por ser esposo de Maria. Nesta qualidade adquiriu o direito de lhe dar ordens, e Maria, na qualidade de esposa, assumiu a obrigação de obedecer a São José. O humílimo São José nunca se serviu de mandos para com a santa Virgem, mas somente de pedidos, por venerar nela a grande santidade e a dignidade de Mãe de Deus. A humílima Esposa, porém, entre todas as criaturas a mais humilde, considerava sempre aqueles pedidos como outras tantas ordens. ― Ó Maria, ó José, ó Esposos santíssimos, que por vossa grande humildade vos fizestes tão amados de Deus, suplico-vos que me alcanceis o perdão de todos os meus atos de soberba, e a graça de sofrer d’aqui por diante com paciência todos os desprezos e injúrias que me vierem da parte dos homens, porquanto hei merecido ser pisado aos pés dos demônios no inferno.

Considera em segundo lugar a alta dignidade de São José por lhe ser conferido por Deus o ofício de pai de Jesus Cristo: Et erat subditus illis (1) ― “E era-lhes submisso”. Quem é que estava submisso? O Rei do mundo, o Filho de Deus e também verdadeiramente Deus todo-poderoso, eterno, perfeito, em tudo igual ao Pai. Este é quem na terra quis estar submisso a São José. Por si mesmo não tinha José autoridade sobre Jesus, por não ser o pai verdadeiro, mas tão somente o pai putativo. Como esposo, porém, e chefe de Maria, foi o chefe também de Jesus Cristo, enquanto homem, por ser o fruto das entranhas de Maria. Quem é dono de uma árvore, o é também dos frutos.

Eis porque a Beata Virgem o chamou pai de Jesus: Pater tuus et ego dolentes quaerebamos te (2) ― “Eu e teu pai angustiados te procuramos”.

Foi portanto a São José, como chefe daquela pequena Família, que coube o ofício de mandar, e a Jesus o de obedecer; de sorte que Jesus nada fazia, não se movia, não tomava alimento nem repouso, senão segundo as ordens de José. Ó dignidade inefável!

II. Devemos honrar muito aquele a quem Deus mesmo tanto tem honrado. E grande confiança devemos pôr na proteção de São José, que viu nesta terra o Senhor do mundo submisso às suas ordens. Escreve Santa Teresa: “O Senhor nos quis dar a entender que, assim como na terra quis ficar submisso a São José, assim faz agora no céu tudo o que o Santo Lhe pede”.

Meu santo Patriarca, pela grande reverência que, como a seu esposo, vos teve Maria, rogo-vos que me recomendeis a ela, e me alcanceis a graça de ser o seu verdadeiro e fiel servo até à morte. E pela submissão que na terra vos mostrou o Verbo encarnado, obtende-me a graça de Lhe obedecer e de amá-Lo perfeitamente. No céu Jesus se compraz em conceder todas as graças que vós pedis em favor daqueles que a vós se recomendam. Eu também, miserável como sou, me recomendo a vós, escolho-vos por meu advogado especial e prometo honrar-vos cada dia com algum obséquio particular. Meu Pai, São José, por piedade, alcançai-me aquela graça que vós sabeis ser mais útil à minha alma, e especialmente a virtude da santa pureza.

“Sim, glorioso São José, pai e protetor das virgens, guarda fiel, a quem Deus confiou Jesus, a mesma inocência, e Maria, a virgem das virgens, eu vos peço e conjuro por Jesus e Maria, este duplo depósito a vós tão caro, com vosso eficaz auxílio dai-me conservar meu coração isento de toda mancha, e que, puro e casto, sirva constantemente a Jesus e Maria em perfeita castidade” (3). ― E vós, ó Mãe de Deus e minha Mãe Maria, pela santa humildade e obediência com que executastes tudo que vosso santo Esposo José vos pedia, alcançai-me de Deus a graça da santa humildade e da perfeita obediência a seus preceitos divinos (4).

Referências:

(1) Lc 2, 51
(2) Lc 2, 48
(3) Indulgência de 100 dias
(4) Esta meditação, embora não se ache nas obras completas de Santo Afonso, é todavia do santo Doutor

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 324-326)

terça-feira, 27 de fevereiro de 2018

Efeitos que em nós produz a divina graça

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Infinitus thesaurus est hominibus; quo qui usi sunt, participes facti sunt amicitiae Dei – “Ela é um tesouro infinito para os homens; do qual os que usaram têm sido feito participantes da amizade de Deus”

Sumário. Porque havemos de ter inveja dos grandes do mundo? Se estamos na graça de Deus, participamos da sua própria natureza; somos, por assim dizer, um com Ele e de momento a momento podemos adquirir tesouros imensos de merecimentos para a eternidade. A nossa alma é então tão bela aos olhos do Senhor, que põe nela a sua complacência. Tudo isto Jesus Cristo no-lo mereceu pela sua Paixão; e por isso devemos prestar-Lhe contínuas ações de graças.

I. No dizer de Santo Tomás de Aquino, o dom da graça é superior a todos os dons que uma criatura possa receber, porque a graça é a participação da própria natureza de Deus. Já antes tinha São Pedro dito o mesmo: Ut per haec (promissa) efficiamini divinae consortes naturae (1) ― “Para que por elas (as promessas) vos torneis participantes da natureza divina”. Tal é a dignidade que Jesus Cristo nos mereceu pela sua paixão: Ele nos comunicou o mesmo resplendor que recebeu de Deus (2). Numa palavra, quem está na graça de Deus, forma, de certo modo, uma pessoa com Deus: Unus spiritus est (3) ― “É um espírito com Ele”. E, como disse o Redentor, na alma que ama a Deus, vem habitar a Santíssima Trindade: Ad eum veniemus, et mansionem apud eum faciemus (4) ― “Viremos a ele, e faremos nele morada”.

É tão bela aos olhos de Deus a alma em estado de graça, que Ele próprio lhe faz o elogio: Como és formosa amiga minha, como és formosa! (5) Parece que Deus não pode apartar dela os olhos, nem cerrar os ouvidos a nenhum dos seus pedidos: Oculi Domini super iustos, et aures eius ad preces eorum (6) ― “Os olhos do Senhor estão sobre os justos e os seus ouvidos abertos aos rogos deles”. Dizia Santa Brígida que nenhum homem poderia ver a beleza de uma alma na graça de Deus, sem morrer de alegria. E Santa Catarina de Sena, tendo visto uma alma assim, afirmou que de boa mente daria a vida para que nunca aquela alma perdesse tamanha beleza. Por isso a mesma Santa beijava a terra que os sacerdotes pisaram, pensando que pelo seu ministério as almas eram colocadas na graça de Deus.

Além disso, que tesouros de merecimentos não pode ajuntar a alma em estado de graça! Cada instante pode adquirir uma glória eterna, porquanto, como diz Santo Tomás, qualquer ato de amor produzido pela alma merece um paraíso aparte.

Porque temos então inveja dos grandes do mundo? Estando na graça de Deus, podemos adquirir continuamente grandezas muito mais altas no céu.

II. A paz de que ainda na terra goza a alma em estado de graça, só pode ser compreendida por aquele que a provou: Gustate et videte, quoniam suavis est Dominus (7) ― “Provai e vede quão suave é o Senhor”. Não pode deixar de ser cumprida a palavra do Senhor: Gozam muita paz os que amam a divina lei (8). A paz do que vive unido com Deus, excede todas as doçuras que nos podem advir dos sentidos ou do mundo: Pax Dei quae exsuperat omnem sensum (9).

Ó meu Jesus, Vós sois o bom pastor que se deixou matar para nos dar a vida, a nós, vossas ovelhas. Quando eu fugia de Vós, não deixastes de correr atrás de mim e de me procurar; recebei-me, agora, que Vos procuro e que volto arrependido a vossos pés. Restitui-me a graça, que miseravelmente perdi por minha culpa. De todo o coração me arrependo e quisera morrer de dor, quando penso nas inúmeras vezes que Vos voltei as costas. Perdoai-me pelos merecimentos da morte cruel que por mim padecestes na cruz.

Prendei-me com os doces laços do vosso amor e não permitais que outra vez me afaste de Vós. Dai-me forças para sofrer com paciência todas as cruzes que me envieis, visto ter merecido as penas eternas do inferno. Fazei que abrace com amor os desprezos que me possam vir dos homens, visto ter merecido estar eternamente sob os pés dos demônios. Fazei, numa palavra, com que obedeça em tudo às vossas inspirações e vença, por vosso amor, qualquer respeito humano. ― Resolvido estou a servir de hoje em diante somente a Vós. Digam os outros o que quiserem; eu quero amar somente a Vós, meu Deus amabilíssimo, só a Vós quero agradar; mas dai-me o vosso auxílio sem o qual nada posso. Amo-Vos, † Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas, de todo o coração, e confio em vosso Sangue.

― Maria, minha esperança, ajudai-me com as vossas orações. Glorio-me de ser vosso servo, e vós vos gloriais de salvar os pecadores que a vós recorrem; socorrei-me, pois, e salvai-me.

Referências:

(1) 2 Pd 1, 4
(2) Jo 17, 22
(3) 1 Cor 6, 17
(4) Jo 14, 23
(5) Ct 4, 1
(6) Sl 33, 16
(7) Sl 33, 9
(8) Sl 118, 165
(9) Fl 4, 7

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 321-324)

segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

Como devemos preparar-nos para a morte

Vida, Morte e Tempo - Memento Mori (Philippe de Champaigne's Vanitas 1.671)

Dispone domui tuae, quia morieris tu et non vives – “Dispõe de tua casa, porque morrerás e não viverás” (Is 38, 1)

Sumário. A experiência prova que morrem felizmente os que, no último momento, estão já mortos para o mundo, isto é, desligados dos bens de que nos deve separar a morte. É, pois, preciso que desde já aceitemos a privação dos bens, a separação dos parentes e de todas as coisas da terra, lembrando-nos que, se não o fizermos voluntariamente agora, necessariamente teremos de o fazer na morte, mas com risco da salvação eterna. Quem ainda não escolheu um estado de vida, tome aquele que houvera querido escolher na hora da morte.

I. Diz Santo Ambrósio que morrem felizmente os que, no tempo da sua morte, estão já mortos para o mundo, isto é, desligados daqueles bens de que forçosamente os deve separar a morte. Mister, pois, se torna que desde já aceitemos a privação dos bens, a separação dos parentes e de todas as coisas da terra. Se não fizermos isto voluntariamente durante a vida, seremos forçados a fazê-lo na morte, mas então com extrema dor e com risco da salvação eterna.

A este propósito observa Santo Agostinho que, para morrer em paz, é vantajosíssimo pormos em ordem durante a vida os negócios temporais, fazendo desde já a disposição dos bens que é preciso deixar, a fim de não termos de nos ocupar então senão da nossa união com Deus. — Naquela hora convém que só se fale em Deus e no paraíso. Os últimos momentos da vida são demasiadamente preciosos para serem desperdiçados em pensamentos terrestres. É na morte que se acaba a coroa dos escolhidos, porque é então que se recolhe a maior soma de merecimentos, aceitando os sofrimentos e a morte com resignação e amor.

Semelhantes sentimentos, porém, não os poderá ter na morte quem não os tiver excitado durante a vida. Com este fim, pessoas devotas têm por hábito renovarem todos os meses a protestação da boa morte com os atos cristãos de fé, esperança e caridade, com a confissão e comunhão, como se já estivessem no leito de morte, próximas a saírem deste mundo. Oh, como esta prática nos ajudará a caminharmos bem, a nos desprendermos do mundo e morrermos de boa morte! Beatus ille servus, quem, cum venerit dominus eius, inveniet sic facientem (1) — “Bem-aventurado aquele servo a quem seu senhor, quando vier, encontre a fazer isto.”

Quem espera a toda a hora a morte, ainda que esta venha subitamente, não pode deixar de morrer bem. Ao contrário, o que se não faz na vida, é dificílimo fazê-lo na morte. — A grande serva de Deus, irmã Catarina de Santo Alberto, da ordem de Santa Teresa, estando para morrer, gemia e dizia: Minhas irmãs, não é o medo da morte que me faz gemer, porque há vinte e cinco anos que a estou esperando, gemo por ver tantas pessoas iludidas, que vivem no pecado, e esperam, para se reconciliarem com Deus à hora da morte, em que eu com dificuldade posso pronunciar o nome de Jesus.

II. Examina-te, meu irmão, e vê se tens o coração apegado a alguma coisa terrestre: a alguma pessoa, a algum posto, a alguma casa, a alguma riqueza, a alguma sociedade, a alguns divertimentos, e lembra-te que não és eterno. Tudo terás de deixar um dia, e talvez em breve. Porque queres então ficar agarrado a esses objetos com risco de morreres cheio de inquietações? Oferece desde já tudo a Deus, estando disposto a privar-te de tudo, quando Lhe agradar.

Se não tens ainda escolhido o estado de vida, toma o que na hora da morte quiseras ter escolhido e que te deixará morrer mais contente. Se já o escolheste, faze agora o que então quiseras ter feito no teu estado. Faze como se cada dia fosse o último de tua vida e cada ação a última que praticas: a última oração, a última confissão, a última comunhão. Imagina, numa palavra, a cada hora que já estás no leito da morte, ouvindo a intimação: proficiscere de hoc mundo — “parte deste mundo”, e por isso repete muitas vezes a protestação para a boa morte, dizendo:

Ó meu Deus, só poucas horas me restam; nelas vos quero amar quanto possa na vida presente, para mais Vos amar na outra. Pouco tenho que Vos oferecer; ofereço-Vos os meus padecimentos e o sacrifício da minha vida, em união com o sacrifício que Jesus Cristo Vos ofereceu por mim na cruz. Senhor, as penas que sofro são poucas e leves em comparação com as que mereci; tais como são, aceito-as em testemunho do amor que Vos tenho. Resigno-me a todos os castigos que me queirais infligir nesta vida e na outra, contanto que Vos possa amar na eternidade. Castiga-me tanto quanto Vos aprouver, mas não me priveis do vosso amor. Sei que não merecia mais amar-Vos, por ter tantas vezes desprezado o vosso amor; mas Vós não podeis repelir uma alma arrependida. Pesa-me, ó meu supremo Bem, de Vos haver ofendido. Amo-vos de todo o coração e em Vós ponho toda a minha confiança. A vossa morte, ó Redentor meu, é a minha esperança. Deposito a minha alma em vossas mãos chagadas.

— Maria, minha querida Mãe, socorrei-me nesse grande momento. Desde já vos entrego o meu espírito: dizei a vosso Filho que se apiede de mim. A vós me recomendo, livrai-me do inferno.

Referências:

(1) Mt 24, 46

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 318-321)

domingo, 25 de fevereiro de 2018

A transfiguração de Jesus Cristo e as delícias do paraíso


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Domine, bonum est nos hic esse – “Senhor, é bom estarmos aqui” (Mt 17, 4)

Sumário. Consideremos hoje a beleza do paraíso e raciocinemos assim: São Pedro e os seus felizes companheiros provaram apenas uma só gota da doçura celestial; não viram senão um raio da divindade. Todavia ficaram de tal modo arrebatados, que desejavam permanecer ali para sempre. O que será então de nós, quando nos saciarmos na fonte das delícias e virmos a Deus tal qual é, face a face? Para chegarmos a tão grande recompensa, devemos antes de mais nada combater e sofrer alguma coisa na terra.

I. No Evangelho de hoje, lemos que certo dia Nosso Senhor, querendo dar a seus discípulos um antegozo da beleza do paraíso, “tomou consigo a Pedro, a Tiago e a João seu irmão, e os conduziu de parte a um alto monte e transfigurou-se diante deles. O seu rosto ficou refulgente como o sol, e suas vestiduras se fizeram brancas como a neve. E eis que lhes apareceram Moisés e Elias, falando com Ele. E tomando a palavra, disse Pedro a Jesus: Senhor, bom é que estejamos aqui: se queres, façamos três tabernáculos, um para ti, outro para Moisés e outro para Elias: Domine, bonum est nos hic esse.”

Detenhamo-nos também a considerar um pouco a beleza do paraíso e raciocinemos assim: São Pedro e os seus felizes companheiros provaram apenas uma só gota da doçura celestial e nem assim puderam conter-se que não rogassem a Jesus, lhes fosse concedido permanecerem sempre naquele lugar. Que será então de nós, quando o Senhor saciar os seus escolhidos da abundância de sua casa e os fizer beber na torrente das suas delícias? (1) São Pedro e os outros dois apóstolos não viram senão um único raio da divindade de Jesus Cristo, o qual transluziu da sua sagrada humanidade. Todavia, não podendo sustentar tão viva luz, ficaram deslumbrados, e como fora de si, caíram de bruços sobre a terra. Que será então quando o Senhor se deixar ver a seus escolhidos face a face, como é em si mesmo? — Tão bela sorte nos espera também a nós, meu irmão, se nos esforçamos por merecê-la ao menos no tempo de vida que ainda nos resta.

Ó doce esperança! Virá um dia em que nós também veremos a Deus como é, isto é, veremos a beleza incriada, que encerra, de modo infinitamente perfeito, todas as belezas espalhadas pelo universo: Similes ei erimus, quoniam videbimus eum sicuti est (2) — “Seremos semelhantes a Ele, porque O veremos como é.”

II. A glória de que gozaram os três venturosos discípulos foi de curta duração; porque “enquanto Pedro ainda falava, uma nuvem luminosa os envolveu. E logo saiu da nuvem uma voz que disse: Este é meu Filho amado, em quem pus toda a minha complacência: ouvi-O… Chegou-se a eles Jesus, tocou-os e lhes disse: Levantai-vos e não temais. Eles então, levantando os olhos, já não viram ninguém senão só Jesus: Neminem viderunt, nisi solum Iesum.”

Com isso o Senhor nos quer dar a entender que as consolações que faz degustar a seus servos, tem por único fim animá-los ao trabalho, porquanto o tempo presente é um tempo de merecer e não de gozar. Eis porque no meio daquela visão celestial, Moisés e Elias não falaram senão das penas e ignomínias do Calvário: Dicebant excessum eius (3) — “Falavam da sua saída deste mundo”. São Pedro é de certo modo repreendido porque desejava ficar sempre no gozo daquelas delícias: Non enim sciebat quid diceret (4) — “Não sabia o que dizia.”

Animemo-nos portanto e procuremos sofrer com paciência as atribulações que Deus nos envia, oferecendo-as ao Senhor em união com as penas que Jesus Cristo sofreu por nosso amor. Quando as cruzes nos afligirem, levantemos os olhos ao céu e consolemo-nos com a esperança do paraíso. Tudo é pouco ou antes nada para merecermos o reino do céu.

Meu amado Redentor, agradeço-Vos as luzes que me dais agora! São sinais de que me quereis salvo a gozar um dia convosco no céu. Quero salvar-me, não tanto para gozar, como para Vos agradar e amar. Amo-Vos, † Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas. Pesa-me de Vos ter ofendido e proponho nunca mais tornar a ofender-Vos. Mas já que me vedes destituído de toda a força, amparai a minha fraqueza, a fim de que eu Vos seja fiel. “Guardai-me interior e exteriormente, para que me defendais de adversidades no corpo e limpeis a minha alma de maus pensamentos”. (5) † Doce Coração de Maria, sêde minha salvação.

Referências:

(1) Sl 35, 9
(2) 1 Jo 3, 2
(3) Lc 9, 31
(4) Mc 9, 5
(5) Or. Dom. curr.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 316-318)

sábado, 24 de fevereiro de 2018

Segunda dor de Maria Santíssima – Fugida para o Egito

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Accipe puerum et matrem eius, et fuge in Aegyptum – “Toma o Menino e sua Mãe, e foge para o Egito” (Mt 2, 13)

Sumário. A profecia de São Simeão acerca da Paixão de Jesus e das dores de Maria começou desde logo a realizar-se na fugida que teve de fazer para o Egito, a fim de subtrair o Filho à perseguição de Herodes. Pobre Mãe! Quanto não devia ela sofrer tanto na viagem como durante a sua permanência naquele país entre os infiéis! Vendo a Sagrada Família na sua fugida, lembremo-nos que nós também somos peregrinos sobre a terra. Para sentirmos menos os sofrimentos do exílio, à imitação de São José tenhamos conosco no coração a Jesus e Maria.

I. Como cerva, que ferida pela flecha, aonde vai leva a sua dor, trazendo sempre consigo a flecha que a feriu; assim a divina Mãe, depois da profecia funesta de São Simeão, levava sempre consigo a sua dor com a memória contínua da paixão do Filho. Tanto mais, que aquela profecia começou desde logo a realizar-se na fugida que o Menino Jesus teve de fazer para o Egito, a fim de se subtrair à perseguição de Herodes: Surge et accipe puerum et matrem eius et fuge in Aegyptum — “Levanta-te, toma o Menino e sua Mãe, e foge para o Egito.”

Que pena, exclama São João Crisóstomo, devia causar ao Coração de Maria, o ouvir a intimação daquele duro exílio com seu Filho! “Ó Deus”, disse então Maria suspirando, como contempla o Bem-aventurado Alberto Magno, “deve, pois fugir dos homens aquele que veio a salvar os homens?”

Cada um pode considerar quanto padeceu a Santíssima Virgem naquela viagem. A estrada, conforme à descrição de São Boaventura, era áspera, desconhecida, cheia de bosques, pouco frequentada, e sobretudo muito longa, de modo que a viagem foi ao menos de trinta dias. O tempo era de inverno; por isso tiveram de viajar com neves, chuvas e ventos, por caminhos arruinados cheios de lama, sem terem quem os guiasse ou servisse. Maria tinha então quinze anos, e era uma donzela delicada, não acostumada a semelhantes viagens. Que dó fazia ver aquela Virgenzinha com o Menino nos braços e acompanhada somente de São José!

Pergunta São Boaventura: Quomodo faciebant de victu? Ubi nocte quiescebant? — “De que alimentavam-se? Onde passavam as noites?” E de que outra coisa podiam alimentar-se, senão de um pedaço de pão duro, trazido por São José, ou mendigado? Onde deviam dormir, especialmente no extenso deserto pelo qual deviam passar, senão sobre a terra, ao relento, com perigo de ladrões ou de feras em que abunda o Egito? Oh! Quem tivera encontrado aqueles três grandes personagens, por quem as haveria então reputado senão por três pobres mendigos e vagabundos?

II. Opina Santo Anselmo que os santos peregrinos no Egito habitaram a cidade de Heliópolis. Considere-se aqui a grande pobreza em que deviam viver nos sete anos que ali permaneceram, como afirma Santo Antônio com Santo Tomás e outros. Eram estrangeiros, desconhecidos, sem rendimentos, sem dinheiro, sem parentes. Como diz São Basílio, chegaram com dificuldade a sustentar-se com os seus pobres trabalhos. Escreve Landolfo de Saxônia (e isto seja dito para consolação dos pobres), que Maria se achava em tão grande pobreza, que algumas vezes não tinha nem sequer um pouco de pão, que o Filho lhe pedia, obrigado pela fome.

Ver assim Jesus, Maria e José andarem fugitivos, peregrinando por este mundo, ensina-nos que também devemos viver nesta terra como peregrinos, sem que nos apeguemos aos bens que o mundo oferece, pois que em breve os havemos de deixar e de ir para a eternidade: Non habemus hic manentem civitatem, sed futuram inquirimus (1) — “Não temos aqui cidade permanente, mas procuramos a futura”. Demais, ensina-nos que abracemos as cruzes, já que neste mundo não se pode viver sem cruz. — A Bem-aventurada Verônica de Binasco, Agostiniana, foi levada em espírito a acompanhar Maria com o Menino Jesus na viagem ao Egito, finda a qual lhe disse a divina Mãe: “Filha, acabas de ver com quantas fadigas chegamos a este país; sabe, pois, que ninguém recebe graças sem padecer.”

Quem deseja sentir menos os trabalhos desta vida, deve, à imitação de São José, tomar consigo Jesus e Maria: Accipe puerum et matrem eius — “Toma o Menino e sua Mãe”. A quem pelo amor traz no coração este Filho e esta Mãe, se lhe tornam leves, quiçá doces e estimáveis, todas as penas. Amemo-los, pois, e consolemos a Maria acolhendo o seu Filho dentro dos nossos corações, que ainda hoje é continuamente perseguido pelos homens com os seus pecados.

Referências:

(1) Hb 13, 14

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 313-316)

sexta-feira, 23 de fevereiro de 2018

Sobre o uso da calça feminina - Por Dom Williamson

A CALÇA FEMININA É UM ATAQUE À FEMINILIDADE DA MULHER

por Dom Williamson

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Caros Amigos e Benfeitores:

O final do Verão pode não parecer ser o mais inteligente momento de optar por escrever sobre o vestuário da mulher. Certamente a chegada, em vez de a partida do clima quente seria o momento para investir contra as roupas indiscretas. No entanto, acontece que várias senhoras neste verão vieram a mim e levantaram a questão das mulheres vestindo calças ou shorts, e o problema é mais amplo e profundo do que apenas imodéstia, embora a imodéstia seja grave.

Dom Antônio de Castro Mayer, por exemplo, costumava dizer que as calças em uma mulher são piores do que a minissaia, porque enquanto a minissaia é sensual e ataca os sentidos, as calças são ideológicas e atacam a mente. Pois realmente as calças das mulheres, como as usadas hoje, curtas ou longas, modestas ou imodestas, apertadas ou soltas, claras ou disfarçadas (como os “culottes”), são uma agressão contra a feminilidade da mulher e por isso representam uma revolta profunda e mentirosa contra a ordem querida por Deus. Isto pode ser menos verdadeiro do que os longos “culottes”, calças que mais se aproximam de uma saia, e na melhor das hipóteses confundidos com saias, mas na medida em que os “culottes” estabelecem o princípio da divisão de vestuário exterior da mulher da cintura para baixo, eles simplesmente disfarçam a desordem grave. Que desordem?

No princípio, Deus criou o homem e a mulher, ambos humanos, mas bastante diferentes, em primeiro lugar o homem, segundo a mulher (Gênesis I, 27; II, 22); mulher para ajudar o homem como ele próprio (Gênesis II, 18), mulher para o homem, não o homem para a mulher (I Coríntios. XI, 9), pois “o homem não é da mulher mas a mulher é do homem” (I Coríntios. XI, 8). Assim, aconteceu que mesmo antes do pecado original Deus ordenou a distinção entre o homem e a mulher, a desigualdade, e a liderança do homem sobre a mulher com o propósito de viver em sociedade e na família sobre a terra.

O pecado original, pelo qual Eva fez Adão pecar e não o contrário (I Tim II, 14), implicou que Eva fosse punida, entre outras coisas, pela manobra da sua subordinação natural e indolor a Adão em uma dominação punitiva dele sobre ela, pois ela tinha mostrado, seduzindo-o, que ela precisava ser controlada… “Estarás sob o poder de teu marido, e ele terá domínio sobre ti” (Gênesis III, 16). Daí para frente, com a transmissão do pecado original a todos os filhos de Adão, passa para todas as filhas de Adão (exceto, é claro, a Santíssima Virgem Maria) esta subordinação punitiva.

Tal como acontece com todos os problemas do pecado, a única solução verdadeira é a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Por exemplo, o domínio penoso do homem sobre a mulher é evidente em todas as civilizações e culturas não cristãs e reaparece em nossa atual cultura anticristã. Enquanto que, por outro lado, no matrimônio católico, pela graça sobrenatural, essa subordinação da mulher ao homem se torna cada vez mais, de acordo com sua natureza, proveitosa para os dois, como o era a submissão de Eva antes de ela e Adão caírem.

Mas, fora com o Éden e graça! O mundo moderno não aceita nenhuma das soluções de Jesus Cristo para os problemas de Adão e Eva. Fazendo ídolos de liberdade e igualdade, recusando qualquer desigualdade ou subordinação da mulher ao homem, ele irá negar qualquer distinção entre eles, ele nega, claro, qualquer ordem de Deus em Sua criação, qualquer necessidade de Redenção, e ele vai negar, se necessário, a própria existência de Deus. O feminismo hoje está intimamente ligado à feitiçaria e ao satanismo.

Essas considerações nos levaram a um longo caminho desde a questão de calças das mulheres. É claro, nem toda mulher vestindo short está conscientemente pensando em desafiar a Deus ou em desafiar os homens. Ela é, no entanto, consciente de algo. Ela tem a clara consciência de que short dividido não é como uma saia não-dividida, e a diferença é que o abandono da saia dá-lhe uma vaga sensação – certamente de desconforto, ou de emancipação, ou ambos … Em que esse sentimento se baseia?

A roupa dividida nas pernas, obviamente, libera a parte inferior móvel do corpo para uma série de atividades para as quais a roupa indivisível, como uma saia, é relativamente incômoda. Se Adão teve que ganhar o pão de sua família com o suor de todos os tipos de atividades fora de casa, é perfeitamente normal que o homem use calças, e se uma menina coloca em sua cabeça que deve acompanhá-lo nessas atividades, obviamente as calças da mesma forma emancipam-na para fazê-lo. Shorts são o sinal externo e visível da liberação dela do leque restrito de atividades domésticas.

No entanto, ela está desconfortável, porque as calças não são do uso natural de uma mulher. Assim, dom mesmo modo que nas outras espécies, na espécie humana o sexo feminino é concebido para atrair a atenção do sexo masculino muito mais do que o inverso – compare o número de revistas de beleza masculina e feminina no mercado. Agora o pecado original feriu a natureza humana com a concupiscência (desejo ilícito), em especial nos sentidos do tato, visão e imaginação. Segue-se para questões de roupa que o que poderia despertar a concupiscência precisa ser mais disfarçado na mulher aos olhos do homem do que no homem aos olhos da mulher. Portanto, assim como as calças beneficiam a atividade do homem, as saias convém à dignidade e à honra da mulher. Portanto, enquanto está vestindo suas calças emancipadoras, ela se sente desconfortável – pelo menos até que sua consciência fique entorpecida – ao passo em que ela vai se afastando de sua identidade, papel e dignidade como mulher. Em sua consciência está ressoando a voz do Senhor seu Deus, pronunciando na Lei Mosaica: “A mulher não se vestirá com as roupas do homem, nem o homem usará o vestuário de uma mulher: aquele que faz estas coisas é abominável diante de Deus” (Dt . XXII, 5). E as calças são normalmente vestuário do homem, por razões já expostas.

É claro que se se nega o pecado original que inflama a concupiscência do homem (Gênesis III, 7) e destrói a subordinação da mulher (Gênesis III, 16), as calças das mulheres não são algo tão insensato, mas veja ao seu redor as consequências absurdas de se negar o pecado original! – a doce Polyanna vai para o escritório vestida de forma a inflamar até mesmo uma pedra, mas ai do pobre colega do sexo masculino no escritório que não reagir como uma pedra, porque com as leis recentes (nos EUA), ela irá atacá-lo no tribunal! Insanidade! Em breve, os locais de trabalho terão de exigir com antecedência das mulheres declarações, sob juramento, sobre se elas querem ou não serem abordadas! Mas o que era de se esperar quando as mulheres foram retiradas de suas casas? Isso tudo serve aos homens liberais certeiros em enganar suas mulheres.

Contraste o bom senso de uma avó americana que me disse neste Verão, quando ela estava em retiro aqui em Winona, que olhando para trás em sua juventude californiana  ela podia ver que tinha sido muitas vezes induzida a usar calças, e agora ela se arrepende – ela podia ver então  que a cada vez [que usava calça] a sua feminilidade tinha sido diminuída. Como disse G.K. Chesterton , não há nada tão oposto ao feminino como o feminismo. As calças das mulheres são uma parte vital, talvez a ruptura essencial, do feminismo.

Quanto à verdadeira feminilidade da mulher, sua importância não pode ser exagerada. Tudo gira em torno das mulheres sendo essencialmente concebidas por Deus para a maternidade, para a educação dos filhos neste mundo, para a sua criação, para a doação da vida, do calor, do amor, do cuidado e da nutrição. Tudo representado pelo leite materno. Para isso os homens não são projetados, disso eles são intrinsecamente incapazes, ainda que disso dependam totalmente para que possam tornar-se seres humanos, em oposição aos desumanos. Em um valioso livro, “The Flight from Woman“, um refinado psiquiatra judeu, Karl Stern, conta como ele podia discernir em incontáveis males dos pacientes da cidade grande, vindos ao seu consultório em Toronto após a Segunda Guerra Mundial, um padrão de falta de feminilidade com a qual ele estava familiarizado através das obras de famosos escritores modernos, como Goethe, Descartes, Tolstoi, Ibsen – não uma falta de mulheres, mas a falta de verdadeiras mulheres femininas, porque os homens e mulheres modernos estão igualmente tripudiando sobre as qualidades e virtudes femininas. Shakespeare destilou esse espírito em Lady Macbeth, protofeminista e satanista:

“Vinde espíritos,
que velais sobre os pensamentos mortais! Retirai-me o sexo
e, dos pés à cabeça, enchei-me até transbordar da mais implacável crueldade!….
Vinde a meus seios e convertei meu leite em fel, vós gênios do assassinato” (Ato I, Cena. V).

Valha-nos Deus! A feminilidade das nossas mulheres está sendo erradicada e o resultado é um modo de vida fadado à autodestruição, condenado a abortar.

Meninas, sejam mães, e, a fim de serem mães, não deixem que cavalos selvagens arrastem-nas em shorts ou calças. Quando as atividades que lhes forem propostas exigirem o uso de calça, se for algo que a sua bisavó fez, então encontre uma maneira de fazê-lo, como ela, usando saia. E se a sua bisavó não fez isso, então esqueça! A geração dela criou seu país, e a sua geração está destruindo-o. É claro que nem todas as mulheres que usam calças abortam o fruto de seu ventre, mas todas ajudam a criar a sociedade abortiva. Antigo é bom, moderno é suicida. Querem parar o aborto? Façam-no pelo exemplo. Nunca usem calças ou shorts. D. Antônio de Castro Mayer estava certo.

Muito sinceramente no Sagrado Coração de Jesus,

+Richard Williamson

Fonte: Tradução (de autor desconhecido) da Carta Pastoral de S.E.Revma.D. Williamson aos amigos e benfeitores de 1º de setembro de 1991.

Original em inglês: http://williamsonletters.blogspot.com.br/2009/02/womens-trousers-are-assault-upon-womans.html

COMEMORAÇÃO DA LANÇA E DOS CRAVOS DE NOSSO SENHOR JESUS CRISTO

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Unus militum lancea latus eius aperuit, et continuo exivit sanguis et aqua – “Um dos soldados abriu-Lhe o lado com uma lança, e imediatamente saiu sangue e água” (Jo 19, 34)
Sumário. Sendo o coração um dos primários órgãos da vida, claro está que tem parte principal nos afetos do homem, tanto nos bons como nos maus. Exatamente para sarar esta raiz viciada dos pecados, quis Jesus Cristo que seu Coração fosse transpassado pela lança, assim como pouco antes, para expiar a culpa de Adão em estender a mão ao fruto vedado, e para reparar os abusos da liberdade, quis que as mãos e os pés lhe fossem transpassados pelos cravos. Ó inventos admiráveis do amor de Deus! E nós não amaremos?

I. Reflete um devoto escritor que na Paixão de Jesus Cristo tudo foi excesso assombroso. Hebreus e Gentios, sacerdotes e seculares, todos juntos conspiraram para fazê-Lo, como o predissera Isaías, o homem de dores e de desprezos. Causa horror a consideração do complexo de maus tratos e injúrias que fizeram Jesus sofrer em menos da metade de um dia, desde a captura até à morte. Mas quem não esperaria que ao menos depois da morte teriam deixado de ultrajá-Lo? Todavia não sucedeu assim.

Refere São João, que os Judeus, para não deixarem os corpos na cruz durante o sábado de Páscoa, pediram a Pilatos que mandasse quebrar as pernas aos supliciados e que os fizessem descer da cruz (1). Eis que Maria, enquanto está chorando a morte do Filho, vê alguns homens, armados de barras de ferro, que se avizinham de Jesus. À tal vista, primeiramente tremeu de espanto, depois disse assim, como medita São Boaventura: Parai; ah! Meu Filho já está morto! Deixai de o injuriar e deixai também de me atormentar mais a mim, sua pobre Mãe! Mas, enquanto está assim falando, vê, ó Deus! Um soldado que vibra com ímpeto uma lança e com ela abre o lado de Jesus: Unus militum lancea latus eius aperuit.

A esse golpe tremeu a cruz, o Coração de Jesus ficou dividido e saiu sangue e água. Não havia mais sangue além daquelas gotas restantes, que o Salvador também quis derramar, para nos fazer entender que não tinha mais sangue para nos dar. A injúria daquela lançada foi de Jesus, mas a dor foi toda de Maria Santíssima.
Minha alma, aproxima-te enternecida da cruz, une as tuas penas com as de tua querida Mãe e prostra-te assim aos pés do Senhor, a fim de que corra sobre ti esse sangue divino.

II. Sendo o coração um dos primários órgãos e como que princípio da vida, claro está que ele tem parte principal nos afetos do homem, segundo o que está escrito: Do coração saem os maus pensamentos, os homicídios, os furtos e as maledicências (2). Foi exatamente para sarar esta raiz viciada dos pecados, que Jesus quis ser ferido em seu sacratíssimo Coração, assim como pouco antes, para expiar a culpa de Adão em estender a mão para o fruto vedado, e para reparar os abusos da liberdade humana, quis que Lhe fossem traspassadas as mãos e os pés. ― Por isso é que a Igreja não hesita em venerar a Lança e os Cravos que tiveram a ventura de ser tintos com o sangue do Senhor. No Ofício, em sua honra exclama saudando-os: “A perfídia judaica escolheu-vos para instrumentos de perversidade; mas o Deus do céu vos transformou em ministros de graça. Pelo que das chagas que abristes no corpo sacrossanto de Jesus, como de outras tantas fontes, nos brotam as graças celestes” (3).

Meu irmão, unamos os nossos afetos aos de nossa boa Mãe, a Igreja. Peçamos ao Senhor perdão do abuso que nós também temos feito da liberdade. Roguemos-Lhe que virando contra nós aqueles cravos e aquela lança, tire a vingança das ofensas que Lhe fizemos, ferindo-nos o coração, as mãos e os pés. Os pés, para que de hoje em diante sejam impotentes em nos expor às ocasiões perigosas; as mãos, para que deixem de praticar o mal; o coração, para que, livre de todo apego desordenado às criaturas, arda sempre de amor divino: Omnisque corde e saucio profanus ardor exeat (4).
Eis o que Vos peço, ó meu Deus! “A Vós, que na fraqueza da natureza humana quisestes ser traspassado com cravos e ferido pela lança, suplico-Vos, concedei-me, que venerando na terra a memória desses cravos e dessa lança, eu vá depois alegrar-me no céu pelo glorioso triunfo de vossa vitória” (5). Fazei-o por amor do Coração aflitíssimo de Maria.
Referências:
(1) Jo 19, 31
(2) Mt 15, 19
(3) Hymn. Matut.
(4) Hymn. Laud.
(5) Or. festi. curr.



(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 311-313)

quinta-feira, 22 de fevereiro de 2018

ALOCUÇÃO DO PAPA BENTO XV ÀS DIRIGENTES DA UNIÃO CATÓLICA FEMININA ITALIANA – O Vestir da Mulher Católica

O VESTIR DA MULHER CATÓLICA

Alocução do Papa Bento XV às Dirigentes da União Católica Feminina Italiana
22 de Outubro de 1919
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A alteração das condições dos tempos atribuiu às mulheres direitos e deveres que a anterior época não lhes permitira. Mas nenhuma mudança na ação dos homens e nenhuma novidade de coisas ou acontecimentos poderão jamais afastar da família, seu centro natural, a mulher consciente de sua missão. No coração doméstico ela é a rainha; e mesmo quando está longe de casa, deve encaminhar para esta não só o carinho de mãe, mas também os cuidados de sábia regente, da mesma forma que um soberano que esteja fora do território do seu Estado não negligencia o bem deste, mas sempre o coloca no ponto mais elevado de seus pensamentos, acima dos seus próprios cuidados.
Com razão, portanto, pode-se dizer que a alteração das condições dos tempos alargou o campo da atividade feminina: àquela ação mais íntima e estrita que ela desenvolvia entre as paredes domésticas, sucedeu-lhe um apostolado no mundo, mas este apostolado deve ser realizado de modo que a mulher, tanto fora como dentro de casa, seja consciente de que sua primeira responsabilidade, ontem como hoje, é a família. Foi com este critério que quisemos agora informar-nos sobre o crescimento, ainda contínuo, da atividade da mulher católica italiana. É onde aplaudimos o reafirmado propósito “de dedicar-se à educação dos jovens, à melhoria da família e da escola”.
Não esquecemos o direito que se pretende reivindicar à liberdade na educação dos filhos, porque seria coisa de bárbaros sugerir que a mãe que formou as crianças dela fisicamente tenha que manter-se afastada do cuidado e crescimento da porção mais nobre deles.
Apressemo-nos, ao contrário, em alegrar-nos pelo propósito que foi feito de garantir que a mulher católica sinta, além do dever de ser irrepreensível, o dever de mostrar-se tal em seu estilo de vestir. Tal propósito manifesta a necessidade do bom exemplo que deve dar a mulher católica; e oh! quão grave, quão urgente é o dever de repudiar os exageros da moda! Isso surge da corrupção dos seus inventores, dando uma contribuição fatal para a grande corrupção geral dos costumes!

ALGUNS EXCESSOS

Sobre este ponto, queremos insistir de uma maneira especial, porque, por um lado, sabemos que certos estilos de vestuário que estão começando a ser aceitos pelas mulheres são provocadores do mal, e por outro lado nos causa espanto ver que quem favorece o veneno parece ignorar a sua ação maléfica, e quem incendeia a casa parece ignorar a força destruidora do fogo. Mas somente a suposição de tal ignorância torna explicável a infeliz extensão que teve em nossos dias uma moda tão contrária àquela modéstia que deveria ser o mais belo ornamento da mulher Cristã. Se ela se desse conta do que estava fazendo, dificilmente poderia chegar ao ponto de entrar na igreja indecentemente vestida e  apresentar-se àqueles que são os naturais e mais credenciados mestres da moral Cristã.

O DEVER DE SE OPOR A ESTA TENDÊNCIA

Oh! Que satisfação tivemos ao perceber que as aderentes à União Católica Feminina têm escrito no seu programa o propósito de mostrar-se irrepreensíveis também na forma de vestir-se! Ao fazê-lo, cumprirão, antes de mais nada, um  estrito dever: o de não dar escândalo e de não ser para outros obstáculo no caminho da virtude. Elas também mostrarão ter compreendido que, depois de ter sido ampliada a sua missão no mundo, devem dar bom exemplo, não só dentro de sua casa, mas também no meio das ruas, até mesmo nas praças públicas.
É importante que a mulher Católica aceite esse desenvolvimento. Elas devem sentir tanto uma obrigação social como pessoal neste campo. Por isso, gostaríamos que as numerosas inscritas na União Católica Feminina, hoje reunidas na nossa presença, realizassem entre si uma união para combater as modas indecentes, não somente entre si mesmas, mas também em toda a sociedade que chegue a sua influência.
Seria desnecessário dizer que a mãe Cristã não deve nunca permitir que as filhas cedam às falsas exigências de uma moda não perfeitamente irrepreensível. Mas não é supérfluo acrescentar que toda mulher de nível – e, quanto maior for a posição que ocupa, tanto maior é o dever dela – não deve tolerar na presença dela indecência no modo de vestuário. Uma advertência, dada a tempo, impediria a renovação dessa impertinência audaz, violadora dos direitos da boa hospitalidade. E talvez o eco dessa lição, chegando aos ouvidos daqueles que criam modas desagradáveis, induziria a não manchar-se mais de vergonha, igual ou semelhante à que a sábia mulher teria oportunamente reprovado. Acreditamos que essa união contra os vícios da moda deva ser bem recebida pelos pais e esposos, pelos irmãos e por toda a família dessas corajosas batalhadoras. Certamente, gostaríamos que a promovessem e favorecessem, do melhor modo possível, todos os sacerdotes a quem compete o cuidado das almas, lá onde a moda tenha ultrapassado os limites da modéstia… e, infelizmente, já os ultrapassou em muitos lugares! Mas a nossa palavra seja acolhida principalmente por vós, amadas filhas, que hoje declarastes vosso desejo de fazer um apostolado no meio do mundo.
Nem somente é este bom exemplo parte da missão educativa que compete diretamente à mulher, tanto dentro como fora do círculo familiar. A coragem cristã que inspira o bom exemplo entre a corrupção do mundo, em face à expansão de modas indecentes, torna mais fácil a missão inteira das mulheres na sociedade. O ditado popular “a virtude inspira respeito” é somente bom senso.

CAMPO PARA AÇÃO

Voltemos, porém, amadas filhas, ao exame, que quer ser de louvor, das vossas intenções. Com prazer, percebemos que a União Católica Feminina “promete especialmente dedicar-se à educação da juventude, à melhoria da família e da escola.” É principalmente aqui que dizemos estar satisfeitos por terem sido atendidos os nossos desejos, pois se tivéssemos de fazer um programa para a ação feminina, não teríamos sido capazes de traçar regras diferentes daquelas que são orientadas para o bem-estar da família, da juventude, da escola. E não somente elogiamos a finalidade, mas também aplaudimos os meios que serão usados, “levando, como já se disse muito bem, para toda a vida do país uma visão mais clara da justiça e da caridade”. Oh! Se as novas gerações crescessem formadas nestas virtudes e, especialmente, se se falasse menos em teoria da justiça e da caridade e mais na prática, os debates e as horríveis questões sociais não tardariam a ter uma boa solução.
Para conseguir tal efeito desejável, a mulher católica deve apelar ao dever que têm os pais de exigir uma sólida educação religiosa para seus filhos. Ela deve apelar à obrigação que têm as autoridades civis de não colocar aqui um obstáculo, mas acima de tudo se deve mostrar convencida da necessidade de buscar na Igreja as mais oportunas normas de ação para colocá-las em prática, o mais breve possível.
Mas porque grande é a necessidade do apostolado da mulher, pois a urgência para frear o mal e para fazer florescer o bem é algo maior do que qualquer esforço possível para a criatura, levantamos nossos olhos para o Céu, e ao Céu, de onde nos pode vir o auxílio mais poderoso, confiantes endereçamos a nossa prece. Ó Senhor, seja do Vosso agrado, enobrecer com a Vossa graça os sábios propósitos da União Católica Feminina: abençoai todas aquelas que, depois de os terem manifestado nobremente, devem cuidar da sua execução; abençoai quem, com conselho ou com ação, deve promover o desenvolvimento e assegurar a eficácia da missão confiada à mulher, para que, assim como de um só indivíduo desviado se poderia dizer que foi orientado a um bom caminho pela fidelidade de uma mulher, “pois o marido infiel fica santificado por sua mulher fiel” (1Cor. VII,14), assim possa o mesmo repetir-se a respeito da sociedade atual que voltou ao caminho da salvação graças aos exemplos e aos ensinamentos, em uma palavra, graças à missão da mulher católica.
Papal Teaching, The Woman in the Modern Word, St. Paul Editions (1958)

QUANTO JESUS DESEJA UNIR-SE CONOSCO NA SANTA COMUNHÃO


     Desiderio desideravi hoc Pascha manducare vobiscum, antequam patiar – “Tenho desejado ansiosamente comer convosco esta Páscoa, antes que padeça” (Lc 22, 15)

Sumário. Nenhuma abelha esvoaça com tanta avidez sobre as flores para lhes sorverem o mel, como Jesus vai morar nas almas que o desejam. Eis porque no Evangelho nos convida tantas vezes a que nos aproximemos dele na santa Comunhão. Faz tantas promessas e tantas ameaças, para manifestar o grande desejo que tem de unir-se conosco. Que ingratidão, pois, se não correspondemos a tão grande amor!

I. Jesus Cristo chama hora sua a noite em que devia começar a sua paixão. Mas como é que pode chamar uma hora tão funesta a sua hora? É porque foi a hora por ele almejada em toda a sua vida, visto que havia determinado que naquela noite havia de nos deixar a santa Comunhão, destinada a consumar a sua união com as almas diletas, pelas quais devia em breve dar o sangue e a vida. Eis aqui o que naquela noite Jesus disse a seus discípulos: Desiderio desideravi hoc pascha manducare vobiscum ― «Tenho desejado ansiosamente comer esta Páscoa convosco». Palavra pela qual o Redentor nos quis dar a entender o desejo ansioso que tinha de unir-se conosco neste santíssimo Sacramento de amor: desiderio desideravi ― «desejei ansiosamente»; estas palavras, diz São Lourenço Justiniani, saíram do Coração de Jesus abrasado em imenso amor.

Ora, a mesma chama que então ardia no Coração de Jesus, ainda está ardendo ali até ao presente; e a todos nós renova o convite feito então aos apóstolos de o receberem: Accipite et comedite, hoc est corpus meum (Mt 26, 26) ― «Tomai e comei: isto é o meu corpo». Além disso, para atrair-nos a recebê-lo com amor, promete o paraíso: Qui manducat meam carnem, habet vitam aeternam (Jo 6, 55) ― «Quem como a minha carne, tem a vida eterna». No caso contrário ameaça-nos com a morte eterna: Nisi manducaveritis carnem Filii hominis, non habebitis vitam in vobis (Jo 6, 54) ― «Se não comerdes a carne do Filho do homem, não tereis a vida em vós».

Estes convites, estas promessas, estas ameaças nasceram todas do desejo que tem Jesus Cristo de se unir conosco na santa comunhão, e este desejo nasce do amor que nos tem. «Não há abelha», disse um dia o Senhor a Santa Matilde, «que com tanta avidez esvoace sobre as flores para lhes sorver o mel, como eu anseio entrar nas almas que me desejam». Porque Jesus nos ama, quer ser amado de nós, e porque nos deseja seus, quer ser desejado, como diz São Gregório: Sitit sitiri Deus. Bem-aventurada a alma que se aproxima da mesa da comunhão com grande desejo de se unir a Jesus Cristo!

II. Adorável Jesus meu, não podeis dar-nos maiores provas de amor par anos fazer compreender quanto nos amais. Destes vossa vida por nós; ficastes no Santíssimo Sacramento, para que venhamos aí alimentar-nos de vossa carne, e quão grande desejo tendes que Vos recebamos! Como podemos ser sabedores de tantas finezas de vosso amor, sem ficarmos abrasados no vosso amor? Longe de mim, afetos terrenos, saí de meu coração; vós é que me impedis de arder por Jesus como ele arde por mim. Ó meu Redentor, que outros testemunhos de afeto posso eu ainda esperar, depois dos que me tendes dado? Por meu amor sacrificastes a vossa vida inteira; por meu amor abraçastes uma morte tão amarga e ignominiosa; por meu amor chegastes, por assim dizer, a aniquilar-Vos, reduzindo-Vos na Eucaristia a estado de alimento, para Vos dardes todo a mim. Ah, Senhor! não permitais que eu seja ingrato a tão grande bondade.

Graças vos dou pelo tempo que me concedeis para chorar minhas ingratidões e Vos amar. Arrependo-me, ó soberano Bem, de ter tantas vezes desprezado o vosso amor. Amo-Vos, ó Bondade infinita; amo-Vos, ó Tesouro infinito; amo-Vos, ó Amor infinito, digno de infinito amor. + Jesus, meu Deus, amo-Vos sobre todas as coisas. Por piedade, ajudai-me, ó meu Jesus, a banir do meu coração todos os afetos que não são para Vós, para que daqui por diante não deseje, não busque e não ame senão a Vós. Meu amado Redentor, fazei com que eu Vos ache sempre e sempre Vos ame. Apoderai-Vos de toda a minha vontade, para que queira somente o vosso beneplácito. Meu Deus, meu Deus, a quem então amarei, se não amo a Vós em quem se encontram todos os bens? Só a Vós quero, e nada mais.

― Ó Maria, minha Mãe, tomai meu coração e enchei-o de perfeito amor a Jesus.

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 308-311)

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2018

CONTAS QUE TERÁ DE DAR A JESUS CRISTO QUEM NÃO SEGUE A VOCAÇÃO


Auferetur a vobis regnum Dei, et dabitur genti facienti fructus eius – “Ser-vos-á tirado o reino de Deus, e será dado a um povo que faça os frutos dele” (Mt 21, 43)

Sumário. Avivemos a nossa fé. A graça que o Senhor nos concedeu chamando-nos a viver em sua casa é muito mais excelente do que se nos tivesse chamado a sermos rei do reino mais extenso da terra. Quanto maior, porém, a graça, tanto mais o Senhor se irritará contra nós, se não Lhe tivermos correspondido; tanto mais rigoroso será o vosso julgamento no dia das contas. Ai de nós, se não obedecermos à chamada divina, ou se por nossa culpa perdermos a vocação!

I. A graça da vocação ao estado religioso não é uma graça ordinária; ela é muito rara e Deus a poucos a concede: Non fecit taliter omni nationi (1) — “Não fez assim a todas as nações”. Oh! Esta graça de ser chamado à vida perfeita e a ser doméstico de Deus em sua casa, quanto é superior à de ser chamado a ser rei do reino mais extenso do mundo! Pois, que comparação pode haver entre um reino temporal na terra e o reino eterno do céu?

Quanto maior, porém a graça, tanto mais o Senhor se irritará contra quem não lhe tiver correspondido, e tanto mais rigoroso será o seu julgamento no dia das contas. Se um rei chamasse um pastorzinho para seu palácio, a fim de o servir entre os nobres de sua corte, quão grande não seria a indignação daquele príncipe, se o súdito recusasse o seu favor, para não deixar o seu pobre redil e o seu pequeno rebanho?

Deus bem conhece o preço das suas graças; por isso castiga rigorosamente àquele que as despreza. Ele é o Senhor: quando chama, quer ser obedecido, e obedecido prontamente; pelo que, quando com a sua luz chama uma alma à vida perfeita, e esta não corresponde, priva-a de sua luz e abandona-a no meio das trevas. Oh! Quantas almas desgraçadas veremos reprovadas no dia do juízo, porque não quiseram obedecer à voz de Deus!

II. Agradece portanto ao Senhor, ter-te convidado a segui-Lo; mas treme, se não correspondes à graça. Chamando-te Deus a servi-Lo mais de perto, é sinal que Deus te quer salvo; mas só te quer salvo pelo caminho que te indica e escolhe. Se queres salvar-te seguindo o caminho que tu mesmo te escolhes, corres grande perigo de o não obteres. Pois, ficando no século ou a ele voltando, quando Deus te quer religioso, não receberás de Deus aqueles auxílios eficazes que te havia preparado em sua casa, e sem os quais não te salvarás. Oves meae vocem meam audiunt (2) — “As minhas ovelhas ouvem a minha voz”. Quem não quer obedecer à voz de Deus, dá sinal de que não é ovelha de Jesus, mas será condenado com os bodes no vale de Josafá.

Senhor, Vós tivestes para comigo este excesso de bondade, de escolher-me de entre tantos outros, para me colocar entre os vossos servos prediletos e fazer-me morar na vossa casa. Conheço quanto esta graça é grande, e quanto eu dela era indigno. Eis-me aqui: quero corresponder a tamanho amor, quero obedecer-Vos. Já que Vós fostes tão generoso para comigo, chamando-me, quando eu não Vos procurava, e além disso Vos era tão ingrato, não permitais que eu venha a cair nesta outra ingratidão suprema, de deixar-Vos, a Vós que por meu amor derramastes o vosso sangue e destes a vida, para novamente me entregar ao mundo, meu inimigo, que no passado tantas vezes me tem feito perder a vossa graça e a minha eterna salvação. Pois que me chamastes, dai-me a força para obedecer.

Já prometi obedecer-Vos, e de novo vo-Lo prometo; mas se Vós não me concedeis a graça da perseverança, não Vos posso ser fiel. A Vós peço esta perseverança, quero-a e espero-a pelos vossos merecimentos. — Dai-me a coragem de vencer as paixões da carne, com que o demônio quer que eu Vos atraiçoe. Amo-Vos, meu Jesus, e me consagro todo a Vós. Já sou vosso e vosso quero ser para sempre. — Maria, Mãe e esperança minha, Vós sois a Mãe da perseverança, que só com a vossa intercessão é concedida; vós ma haveis de alcançar; em vós confio.

Referências:

(1) Sl 147, 20
(2) Jo 10, 27

(LIGÓRIO, Afonso Maria de. Meditações: Para todos os Dias e Festas do Ano: Tomo I: Desde o Primeiro Domingo do Advento até a Semana Santa Inclusive. Friburgo: Herder & Cia, 1921, p. 306-308)

terça-feira, 20 de fevereiro de 2018

Carta Encíclica Vigilanti Cura: Sobre o cinema (29 de junho de 1936) | PIO XI

CARTA ENCÍCLICA
VIGILANTI CURA
DO SUMO PONTÍFICE
PAPA PIO XI
AOS VENERÁVEIS IRMÃOS ARCEBISPOS, 
BISPOS E DEMAIS ORDINÁRIOS 
DOS ESTADOS UNIDOS DA AMÉRICA, 
EM PAZ E COMUNHÃO COM A SÉ APOSTÓLICA

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SOBRE O CINEMA



 Veneráveis Irmãos

Saudação e Bênção Apostólica


Elogio da "Legião da decência"


1. Acompanhamos com vigilante solicitude, como exige o Nosso ministério apostólico, cada obra dos venerandos antístites e de todo o povo cristão; por isto Nos foi sumamente consoladora a notícia de ter já sazonado frutos salutares e porfiar ainda mais ricas vantagens aquela providente iniciativa, que fundastes há mais de dois anos e cuja realização confiastes de modo especial à "Legião da Decência", com o fito de, qual santa cruzada, reprimir os abusos das representações cinematográficas.

2. Isso Nos oferece o ensejo, há tanto tempo almejado, de externar mais amplamente Nosso parecer sobre este assunto, relacionado tão de perto com a vida moral e religiosa de todo o povo cristão. Antes de tudo Nos congratulamos convosco por ter esta Legião, guiada e instruída por vós e apoiada pela valiosa cooperação dos fiéis, já prestado, neste setor do apostolado, tão relevantes serviços; alegria tanto mais intensa quanto, angustiados, registrávamos que a arte e indústria do cinema chegara, por assim dizer, "em grandes passos fora do caminho", ao ponto de mostrar a todos, em imagens luminosas, os vícios, crimes e delitos.


I – O cinema e a moral cristã

Zelo da Sé Apostólica neste campo

3. Cada vez que se Nos oferecia uma ocasião propícia, consideramos ser um dever de Nosso altíssimo ofício dirigirmo-Nos ao Episcopado e outros membros do Clero, e também a todos os homens de reta e boa vontade, a fim de se preocuparem com este problema de suma importância.

O cinema precisa colocar-se a serviço do aperfeiçoamento do homem

4 . Já na encíclica Divini illius magistri", lamentamos "que tais poderosos meios de divulgação, que podem ser, quando inspirados por princípios sãos, de grande utilidade para a instrução e educação, são muitas vezes desgraçadamente subordinados ao fomento dos instintos maus, à avidez do lucro". (A. A. S., 1930, p. 82). Em agosto de 1934, dirigindo-Nos, numa audiência, a uma deputação da Federação Internacional do Trabalho da Imprensa Cinematográfica, depois de ter mostrado a grande importância que esta espécie de espetáculo tomou em nossos dias, e sua influência tão intensa, quer para promover o bem, quer para insinuar o mal, lembrávamos que a todo custo se devia aplicar ao cinema, para que ele não injuriasse e desacreditasse a moral cristã, ou simplesmente a moral humana e natural, a regra suprema que deve reger e regulamentar o grande dom da arte.

Toda a arte nobre tem como fim e como razão-de-ser, tornar-se para o homem um meio de se aperfeiçoar pela probidade e virtude; e por isso mesmo deve ater-se aos princípios e preceitos da moral. E concluíamos, com a aprovação manifesta daquelas pessoas de elite – ainda Nos é consolador relembrar – ser necessário tornar o cinema conforme às normas retas, de modo que possa levar os espectadores à inteireza da vida e uma verdadeira educação.

5. E ainda recentemente, no mês de abril último, recebendo em audiência um grupo de delegados do Congresso Internacional da Imprensa do Cinema, realizado em Roma, expúnhamos de novo o gravíssimo problema e exortávamos com ardor todas as pessoas cordatas, não só em nome da religião, mas também em nome do verdadeiro bem-estar moral e civil dos povos, de envidar todos os esforços, de usar de todos os meios, principalmente da imprensa, para que o cinema se torne cada vez mais um elemento precioso de instrução e de educação, e não de destruição e de ruína para as almas.

Necessidade de diretrizes para a igreja universal

6. Mas o assunto é de tal importância, principalmente nas condições atuais da sociedade, que julgamos necessário tratá-lo de novo, nesta carta, e desenvolvê-lo mais circunstancialmente, traçando diretrizes que correspondam às necessidades presentes, válidas não só para vós, Veneráveis Irmãos, mas também para todos os Bispos do orbe católico. Com efeito, é mui necessário e urgente cuidar para que os progressos da ciência e da arte, e mesmo das artes da indústria técnica, verdadeiros dons de Deus, sejam dirigidos de tal modo à glória de Deus, à salvação das almas, à extensão do reino de Jesus Cristo sobre a terra, que todos, como a Igreja nos faz rezar, "aproveitemos os bens temporais de modo a não perder os bens eternos". Ora, facilmente todos podem verificar que os progressos do cinema, quanto mais maravilhosos se tornam, mais perniciosos foram para a moralidade e para a religião, e mesmo para a honestidade do Estado civil.

Preocupação dos próprios diretores da indústria cinematográfica

7. Os próprios diretores desta indústria, nos Estados Unidos, reconheceram-no quando a esse respeito confessaram sua responsabilidade perante os indivíduos e a sociedade. Em março de 1930, por um ato livre, feito de comum acordo ratificado por suas assinaturas e promulgado pela imprensa, tomaram o compromisso solene de proteger no futuro a moralidade dos freqüentadores do cinema. Em virtude dessa promessa, comprometeram-se expressamente a nunca exibir um filme que rebaixasse o senso moral dos espectadores, que ferisse a lei natural e humana ou que mostrasse simpatia pela violação da mesma.

Frustrados estes esforços

8. No entanto, apesar desta prudente determinação tomada espontaneamente, os responsáveis e os fabricantes de filmes não puderam ou formalmente não quiseram submeter-se aos princípios a cuja observância se tinham obrigado. Tendo este compromisso sido quase nulo e prosseguindo a exibição do vício e do crime no cinema, todo homem probo, que procura uma honesta diversão, vê-se as mais das vezes obrigado a ficar longe destes espetáculos.

O exemplo dos bispos dos E.U. "Legião da decência"

9. Nesta gravíssima situação, Veneráveis Irmãos, fostes vós os primeiros a estudar o meio de defender contra o perigo iminente as almas confiadas aos vossos cuidados; instituístes a "Legião da Decência" como uma cruzada santa, fundada para reanimar enfim os ideais da honestidade moral e cristã. Muito longe de vós esteve a idéia de prejudicar a indústria do cinema; pelo contrário, vós a preservastes antes contra as ruínas, às quais são expostas as formas recreativas que degeneram em corrupção da arte.

O apoio dos católicos

10. Vossas diretrizes suscitaram a adesão pronta e dedicada dos fiéis que dirigis. E milhões de católicos dos Estados Unidos subscreveram os compromissos da "Legião da Decência", obrigando-se a não assistir a representações cinematográficas que ofendessem a moral cristã e as regras de uma vida honesta. Podemos dizer com imensa alegria: vimos o vosso povo colaborar em tão boa harmonia com os bispos na execução deste programa, como jamais nestes últimos tempos Nos foi dado ver mais íntima união entre ambos.

O apoio de cristãos e de outros grupos

11. E não só os filhos da Igreja Católica, mas distintos protestantes e ilustres israelitas e muitos outros aceitaram a vossa iniciativa; uniram-se aos vossos esforços para dar ao cinema normas que condigam com tão nobre arte e a moral. Conforta-Nos muito assinalar o sucesso notável desta cruzada, pois que, segundo Nos foi referido, sob a vossa vigilância e sob a pressão da opinião pública o cinema mostrou um progresso no terreno moral. Crimes e vícios foram reproduzidos menos freqüentemente do que antes; o pecado não foi aprovado e aclamado tão abertamente; não mais se apresentaram de maneira tão impressionante falsas normas de vida ao espírito impressionável e facilmente excitado da mocidade.

Resposta às críticas

12. Embora em certos meios se tenha predito que o valor artístico do cinema sofreria pelas exigências da "Legião da Decência", parece ter sucedido exatamente o contrário. Pois esta Legião deu forte impulso aos esforços feitos para elevar cada vez mais o cinema a grande nobreza de nível artístico, impelindo-o à produção de obras clássicas e a criações originais de valor pouco comum.

13. Também os que colocaram seu dinheiro na indústria cinematográfica não tiveram prejuízo com isso, como alguns, sem provar com razões suficientes sua asserção, agouraram; pois não poucos, que aborreciam o cinema por ofender a moral, recomeçaram a freqüentar estes espetáculos, desde que se exibiram filmes com enredos que não desdizem nem da probidade humana nem da moral cristã.

14. No começo da vossa cruzada, Veneráveis Irmãos, dizia-se que estes esforços seriam de curta duração e seus efeitos transitórios, porque, relaxando a vossa vigilância e a dos vossos fiéis, os industriais voltariam a seu talante aos processos anteriores. É fácil compreender por que alguns desejavam voltar às produções equívocas que excitam as paixões inferiores e que proibistes. Enquanto a produção de figuras realmente artísticas, de cenas humanas e ao mesmo tempo virtuosas exige um esforço intelectual, trabalho, habilidade e também uma despesa grande, é relativamente fácil provocar certa categoria de pessoas e de classes sociais com representações que excitam as paixões e despertam os instintos inferiores, latentes no coração humano.

Perseverar no esforço iniciado e bem sucedido

15. Uma vigilância incessante e universal deve convencer de vez aos produtores de que a "Legião da Decência" não foi fundada para ter só uma curta duração, mas que, sob os auspícios dos Bispos dos Estados Unidos, as diversões honestas do povo em qualquer tempo e sob qualquer aspecto com todo empenho sejam salvaguardadas.


II. Influência do Cinema e Fiscalização

Necessidade do lazer, mas sadio e moral

16. Não há negar que o recreio corporal e espiritual, em suas múltiplas manifestações do progresso moderno, tornou-se necessário para os que se cansam nas ocupações e cuidados da vida, mas ele deve ser digno e por isto são e moral; deve elevar-se ao nível de fator positivo de nobres sentimentos. Um povo que, em seus momentos de repouso, se entrega a prazeres que ferem o pudor, a honra, a moral, divertimentos que constituem uma ocasião do pecado, especialmente para a mocidade, corre o perigo de perder sua grandeza e seu poder.

Importância do cinema como divertimento

17. É indiscutível que, entre estes divertimentos, o cinema adquiriu, nos tempos modernos, uma importância máxima, por ter-se estendido a todas as nações. Não é necessário registrar que milhões de pessoas diariamente assistem às representações do cinema; que se abrem locais para semelhantes espetáculos cada vez em maior número, em meio de todos os povos de alta cultura ou só meio civilizados; que o cinema se tornou a forma mais popular de recreação, não só para os ricos, mas para todas as classes da sociedade.

O poder de influência do cinema

18. Não há hoje um meio mais poderoso para exercer influência sobre as massas, quer devido às figuras projetadas nas telas, quer pelo preço do espetáculo cinematográfico, ao alcance do povo comum, e pelas circunstâncias que o acompanham.

A força da imagem aliada à música

19. O poder do cinema provém de que ele fala por meio da imagem, que a inteligência recebe com alegria e sem esforço, mesmo se tratando de uma alma rude e primitiva, desprovida de capacidade ou ao menos do desejo de fazer esforço para a abstração e a dedução que acompanha o raciocínio. Para a leitura e audição, sempre se requer atenção e um esforço mental que, no espetáculo cinematográfico, é substituído pelo prazer continuado, resultante da sucessão de figuras concretas. No cinema falado, este poder atua ainda com maior força, porque a interpretação dos fatos se torna muito fácil e a música ajunta um novo encanto à ação dramática. Se nos entreatos se acrescentam danças e variedades, as paixões recebem excitações das mais perigosas, que avultam vertiginosamente.

O cinema como lição de coisas

20. A cinematografia realmente é para a maioria dos homens uma lição de coisas que instrui mais eficazmente no bem e no mal, do que o raciocínio abstrato. É, pois, necessário que o cinema, erguendo-se ao nível da consciência cristã, sirva à difusão dos seus ideais e deixe de ser um meio de depravação e de desmoralização.

Os malefícios dos maus filmes

21. É geralmente sabido o mal enorme que os maus filmes produzem na alma. Por glorificarem o vício e as paixões, são ocasiões de pecado; desviam a mocidade do caminho da virtude; revelam a vida debaixo de um falso prisma; ofuscam e enfraquecem o ideal da perfeição; destroem o amor puro, o respeito devido ao casamento, as íntimas relações do convívio doméstico. Podem mesmo criar preconceitos entre indivíduos, mal-entendidos entre as várias classes sociais, entre as diversas raças e nações.

Os bons filmes e seus frutos

22. As boas representações podem, pelo contrário, exercer uma influência profundamente moralizadora sobre seus espectadores. Além de recrear, podem suscitar uma influência profunda para nobres ideais da vida, dar noções preciosas, ministrar amplos conhecimentos sobre a história e as belezas do próprio país, apresentar a verdade e a virtude sob aspecto atraente, criar e favorecer, entre as diversas classes de uma cidade, entre as raças e entre as várias famílias, o recíproco conhecimento e amor, abraçar a causa da justiça, atrair todos à virtude e coadjuvar na constituição nova e mais justa da sociedade humana.


Aspectos que esclarecem a força dos filmes:

a) exibidos para grandes grupos

23. Estas Nossas observações são tanto mais graves por falar uma representação de cinema não a pessoas separadas, e sim a grandes reuniões, e isto em condições de lugar e tempo que podem levar a um entusiasmo depravado, como também a um ardor ótimo; entusiasmo que pode chegar a uma louca e geral concitação, que pela experiência tão bem conhecemos.

b) em salas semi-obscuras

24. As figuras cinematográficas são mostradas a pessoas sentadas em meia-escuridão e cujas faculdades mentais, e mesmo forças espirituais, estão freqüentemente descontroladas. Não é necessário ir longe para encontrar essas salas; estão em geral ao lado das casas, das igrejas e dos grupos escolares, levando assim o cinema ao meio da vida a sua influência suma e suma importância.

c) a sedução dos atores e atrizes

25. As variadíssimas cenas no cinema são representadas por homens e mulheres escolhidos sob o critério da arte e de um conjunto de qualidades naturais, e que se exibem num aparato tão deslumbrante a se tornarem às vezes uma causa de sedução, principalmente para a mocidade. O cinema ainda tem a seu serviço a música, as salas luxuosas, o realismo vigoroso, todas as formas do capricho na extravagância. E por isso seu encanto se exerce com um atrativo particular sobre as crianças e os adolescentes. Justamente na idade, na qual o senso moral está em formação, quando se desenvolvem as noções e os sentimentos de justiça e de retidão, dos deveres e das obrigações, do ideal da vida, é que o cinema toma uma posição preponderante.

De fato, geralmente a serviço do mal

26. E, infelizmente, no atual estado de coisas, é geralmente para o mal que o cinema exerce sua influência. Quando pensamos na ruína de tantas almas especialmente de moços e de crianças, cuja integridade e castidade periga nas salas de cinema, vem à Nossa mente a terrível sentença de Nosso Senhor contra os corruptores dos pequenos: "O que escandalizar um destes pequeninos que crêem em mim, melhor lhe fora que se lhe pendurasse ao pescoço a mó que um asno faz girar e que o lançassem no fundo do mar". (Mt 18, 6 ). É uma das supremas necessidades do nosso tempo fiscalizar e trabalhar com todo afinco para que o cinema não seja uma escola de corrupção, mas que se transforme em um precioso instrumento de educação e de elevação moral.

Preocupação dos governos

27. Aqui lembramos com viva satisfação que certos governos, preocupados com a influência do cinema no domínio moral e educativo, criaram, por meio de pessoas probas e honestas, principalmente com pais e mães de família, comissões especiais de censura, como também organismos indicadores para a produção cinematográfica, orientando sua inspiração para obras nacionais de seus grandes poetas e escritores.

Os bispos e católicos dos outros países sigam o exemplo

28. Assim, se é sobremaneira conveniente que vós, Veneráveis Irmãos, exerçais uma vigilância especial sobre a indústria cinematográfica em vosso país, a qual por causa de seu vigoroso desenvolvimento exerce grande influência nas outras partes do mundo, é também dever dos Bispos de todo o orbe católico unirem-se para fiscalizar esta universal e poderosa forma de diversão e de ensino, para fazer prevalecer como motivo de proibição do mau cinema, a ofensa feita ao sentimento religioso e moral e a tudo que é contrário ao espírito cristão e a seus princípios éticos, não se cansando de combater tudo que contribui para enfraquecer ou extinguir no povo o sentimento da decência e da honra. É um dever que compete não somente aos Bispos, mas também a todos os católicos e a todos os homens honestos que amam a dignidade e a saúde moral da família, da nação, e em geral da sociedade humana.


III. Meios de Vigilância e Censura

Vigilância difícil quanto à produção dos filmes

29. Em que consiste, para o momento presente, esta vigilância? O problema da produção de filmes morais seria radical e felizmente resolvido, se fosse possível obter uma produção cinematográfica, inspirada completamente nos princípios da moral cristã. Por este motivo, não Nos cansaremos de louvar aqueles que se consagraram e se consagrarão ao nobre intuito de elevar a cinematografia à função de educação humana e às exigências da consciência cristã. Empreendam isto com a competência de técnicos e não de meros diletantes, para evitar prejuízo de dinheiro e de energia.

Necessidade de vigiar os filmes que estão nas telas

30. Por ser, porém, como Nós bem o sabemos, muito difícil organizar uma tal indústria, principalmente por motivos de ordem financeira, e como, de outro lado, é necessário exercer influência sobre todos os filmes para que não haja ação prejudicial, no que diz respeito à religião, moral e sociedade civil, é necessário que os pastores de almas se interessem pelos filmes que estão atualmente ao alcance do povo cristão.

Apelo aos diretores, autores e atores católicos

31. Quanto à indústria dos filmes, exortamos ardentemente aos Bispos de todos os países produtores, e especialmente a vós, Veneráveis Irmãos, a fazer um apelo a todos os católicos que de qualquer forma participam desta indústria. Eles devem pensar seriamente nos seus deveres e nas responsabilidades que têm como filhos da Igreja; devem usar de seu empenho para reproduzir nos filmes que produzem, ou que ajudam a produzir, princípios sãos e morais. O número de católicos executores ou diretores, autores e atores nos filmes não é pequeno, e infelizmente sua influência na confecção dos filmes nem sempre foi de acordo com a sua fé e suas idéias. Será dever dos bispos estimulá-los a fazer concordar sua profissão com a consciência de homens respeitáveis e discípulos de Jesus Cristo. Aí, como em todos os campos de apostolado, os pastores de almas certamente encontrarão excelentes colaboradores nos que militam nas fileiras da Ação Católica, aos quais nesta Carta Encíclica fazemos ardoroso apelo para que dêem seu concurso sem tréguas e sem desfalecimento também a esta campanha.

Deveres dos bispos

32. Periodicamente os bispos farão bem em relembrar à indústria cinematográfica que, entre as preocupações de seu ministério pastoral, está a obrigação de se interessarem por todas as formas de diversão sã e honesta, porque são responsáveis diante de Deus pela moralidade do povo, a eles confiado, mesmo quando se diverte. O ministério sagrado que exercem força-os a dizer clara e abertamente que um divertimento impuro destrói as fibras morais de uma nação. O que lhes pedem não diz respeito somente aos católicos, mas a todo o público que freqüenta o cinema. Vós, em particular, Veneráveis Irmãos, vós podeis procurar obter dos produtores de filmes este fito, lembrando que eles, nos Estados Unidos, livremente se comprometeram a tomar por si a grave responsabilidade que têm perante a sociedade.

33. Os bispos do mundo inteiro, porém, devem esforçar-se para esclarecer os industriais do cinema, fazendo-os compreender que uma força tão poderosa e universal pode ser dirigida utilmente para um fim muito elevado, como seja o aperfeiçoamento individual e social da humanidade. E não é só questão de evitar o mal. Os filmes nao devem somente ocupar as horas vagas de lazer, mas podem e devem, por sua força magnífica, ilustrar as mentes dos espectadores e dirigi-los positivamente para todas as virtudes.


Indicações práticas:

1. Compromisso anual dos católicos

34. Dada a importância da matéria, julgamos oportuno traçar algumas indicações práticas. Antes de tudo, todos os pastores de almas se esforçarão por obter dos fiéis que façam anualmente, como os católicos dos Estados Unidos da América, a promessa de se absterem dos filmes que ofendem a verdade e as instituições cristãs. Este compromisso pode ser obtido de modo mais eficaz por meio da Igreja paroquial ou das escolas; e para este fim os bispos reclamarão a diligente cooperação dos pais e das mães de família, que têm, nesta matéria, graves deveres e responsabilidades. Igualmente podem usar da imprensa católica, que mostrará, com afinco e proveito, a importância desta santa cruzada.

2. Boletins regulares com a classificação dos filmes

35. A execução dessa promessa solene requer que o povo conheça claramente quais os filmes permitidos a todos, quais os filmes permitidos com reserva, quais os filmes prejudiciais ou positivamente maus. Isto exige confecção de listas e sua publicação regular, em forma de boletins, em que, a miúdo, se classifiquem os filmes em forma acessível a todos.

36. Seria para desejar que se pudesse formar uma lista para o mundo inteiro, porque a mesma lei moral está em vigor para todos. Mas, como se trata de publicações que interessam a todos os ramos da sociedade, sábios e ignorantes, ao povo e governos, o juízo sobre um filme não pode ser o mesmo em toda parte. Realmente, as circunstâncias e formas de vida variam em todos os países: não seria por isto prático estabelecer uma só lista para o mundo inteiro. Se cada nação conseguir uma lista com a classificação dos filmes, como indicamos mais acima, já se terá obtido em princípio a direção desejada.

3. Criação de juntas nacionais e suas funções:

Produção e classificação de filmes

37. Para este fim, é imprescindivelmente necessário que os bispos criem, em cada país, uma Junta Nacional permanente de revisão, que promova a produção de bons filmes, classifique os outros e divulgue o julgamento ao clero e fiéis. Essa junta seria, com grande proveito, ligada aos organismos centrais da Ação Católica, que está, como é do conhecimento geral, na dependência imediata dos Bispos. Esta obra revisora, para surtir os efeitos infalível e ordenadamente, deve, em cada nação, representar uma unidade e ser administrada centralmente.

38. Naturalmente, por motivos ponderosos, os Bispos, nas suas respectivas dioceses e por meio de sua comissão diocesana, poderão aplicar critérios mais severos à lista nacional feita com normas mais gerais, conforme as condições da sua região, mesmo vetando os filmes já admitidos na lista geral pela razão de ter que estabelecer normas válidas para toda a nação.

Organização e coordenação de salas de cinema

39. Esta junta deve ter também a incumbência de organizar salas de cinemas existentes na paróquia e nas associações católicas, de maneira a garantir a essas salas filmes selecionados. Devido à organização dessas salas que se tornam bons clientes para a indústria cinematográfica, pode-se alcançar que essa indústria produza filmes correspondentes completamente a nossos princípios, filmes, que serão depois fornecidos não só às salas católicas, mas também a todas as outras.

40. Compreendemos que a instituição de semelhante junta exige dos fiéis não poucos sacrifícios e despesas. Mas a importância do cinema e a necessidade de proteger a pureza dos costumes do povo cristão e a moralidade da nação inteira, exigem terminantemente essa despesa e trabalho. A eficiência poderosa de nossas escolas, de nossas associações de Ação Católica e mesmo do sagrado ministério está diminuída e posta em perigo pela chaga dos maus cinemas, tão prejudiciais.

A estruturação das juntas nacionais

41. A junta deve ser formada por pessoas conhecedoras da técnica cinematográfica e bem firmes nos princípios morais da doutrina católica; devem ser estas pessoas dirigidas por um padre escolhido pelo bispo. Um acordo oportuno ou troca de informações entre os centros dos diversos países poderão tornar mais eficaz e harmoniosa a obra de revisão dos filmes, tomando na devida consideração as diversas condições e circunstâncias. Só assim será possível conseguir, com o auxílio dos escritores católicos, esta admirável unidade no sentir, julgar e agir.

Compreensão e apoio dos bispos

42. Os centros devem inspirar-se oportunamente não só nas experiências já adquiridas pelos Estados Unidos, mas também nos trabalhos realizados pelos católicos do mundo inteiro. Se os membros componentes destes diversos centros caíssem em erro, embora com as melhores intenções, o que acontece com todas as coisas humanas, os Bispos tratarão, com sua prudência pastoral, de reparar estes erros e ao mesmo tempo amparar quanto possível a autoridade e estima dos referidos centros, reforçando-os com outros companheiros de autoridade, ou substituindo os que se revelarem incapazes.

Frutos que advirão da vigilância dos bispos

43. Se os bispos do mundo aceitarem a responsabilidade para exercer esta vigilância onerosa sobre o cinema, do que não duvidamos, pois conhecemos seu zelo pastoral, poderão fazer uma grande obra para proteção da moralidade do povo nos momentos de repouso. Assim procedendo, terão a seu favor a aprovação e a cooperação de todos os espíritos bem formados, católicos e não-católicos; contribuirão para o progresso desta grande potência internacional, que é o cinema, com a elevada intenção de promover o melhor ideal e as regras de uma vida mais santa.

A bênção apostólica

44. Para dar maior força a estes votos que dimanam do Nosso coração paternal, imploramos o auxílio da graça divina, como penhor da qual Nós vos concedemos, com efusão de nossa alma, a vós, Veneráveis Irmãos, e a vosso clero e ao povo a vós confiado, a Bênção Apostólica.

Dado em Roma, junto a S. Pedro, dia 29 de junho, festa dos santos Apóstolos Pedro e Paulo, no ano de 1936, décimo quinto ano do Nosso Pontificado.



 PIUS PP. XI